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02/09/2021
O egoísmo e a instabilidade dos casamentos fechados aos filhos
Por que os casais que escolhem não ter filhos são, em última instância, egoístas e instáveis? Qual o problema com essa falta de desejo, que infelizmente parece estar se alastrando pelo Ocidente nos dias de hoje?


Muitos séculos antes de Cristo, Aristóteles registrou a seguinte observação em sua Ética a Nicômaco: “Os filhos parecem ser um vínculo de união. Logo, casais estéreis se separam mais facilmente, pois os filhos são um bem comum às duas partes, e o que é comum preserva a amizade” [1]. No século XIII, Santo Tomás de Aquino fez o seguinte comentário a essa passagem:

Em seguida, [Aristóteles] indica um meio de fortalecer essa amizade [do matrimônio]. Ele observa que os filhos parecem ser causa de uma união estável e duradoura. Logo, casais estéreis se separam mais facilmente. De fato, no passado, o divórcio era concedido por causa da esterilidade. A razão disso é que os filhos são um bem comum ao marido e à mulher, cuja união existe pelo bem dos filhos. Mas o que é comum continua e preserva a amizade, que também consiste em compartilhar (communicatio), como foi dito.

O Papa João Paulo II, um filósofo da moral muito familiarizado com Aristóteles e Santo Tomás, parece ter pensado justamente nisso quando escreveu o seguinte em sua Carta às Famílias

No recém-nascido realiza-se o bem comum da família. Assim como o bem comum dos esposos se cumpre no amor esponsal, pronto a dar e a acolher a nova vida, do mesmo modo bem comum da família se realiza mediante o mesmo amor esponsal concretizado no recém-nascido (n. 11).

Nem o filósofo iluminista Baruch Spinoza (1632-1677) — um moderno obstinado que afirmou que as coisas não agem por natureza com vistas a um fim e que as causas finais são produtos de nossa fantasia — foi capaz de negar em sua Ética que o matrimônio está inerentemente ligado aos filhos [2]. Foi como se os próprios fatos o forçassem a dar assentimento: 

Com relação ao matrimônio, certamente está em conformidade com a razão o fato de que o desejo de união física pode não ser provocado apenas pela beleza corporal, mas também pelo desejo de gerar filhos e educá-los; e mais ainda: o amor entre os dois, isto é, entre homem e mulher, pode não ser causado apenas pela beleza corporal, mas também pela liberdade da alma. 

Portanto, não estamos completamente despreparados para a observação um tanto ácida de Blaise Pascal (1623-1662), extraída de seus Pensamentos, segundo a qual os filhos são um bem tão grande para o matrimônio, que os casais que os evitam de forma egoísta são piores do que os fornicadores:

Não é a bênção nupcial [da Igreja] que remove o pecado da procriação, mas o desejo de gerar filhos para Deus, o que só é genuíno no matrimônio… As filhas de Ló, por exemplo, que só queriam ter filhos, eram mais puras sem o casamento do que as pessoas casadas que não desejam ter filhos.

Qual é o problema com essa falta de desejo? O que ela nos diz? Poderíamos começar com as incisivas observações de Gabriel Marcel, que descreve em sua obra Homo Viator a contradição da contracepção:

Os defensores do controle de natalidade alegam, de forma mais ou menos sincera, que é por piedade que se recusam a dar aos seus descendentes a chance de existir; mas ainda assim não podemos deixar de observar que essa piedade concedida a um custo baixo, não a seres vivos, mas a uma ausência de ser ou ao nada, é vista juntamente com uma oportunidade suspeitosamente positiva de satisfazer ao mais cínico egoísmo. Além disso, dificilmente ela pode ser separada de uma filosofia empobrecida que mede o valor da vida humana pelos prazeres e conveniências que proporciona.

O que Marcel está fazendo é apontar o egoísmo inerente ao desejo de “manter o casamento apenas para nós dois”. Isso é contrário à sua própria natureza, que é boa, já que as coisas boas são feitas para ser compartilhadas, disseminadas, multiplicadas e perpetuadas. Se não quisermos multiplicar os pães e peixes que Deus nos deu uma capacidade natural de multiplicar, faremos passar fome a nós mesmos e aos outros. Se não buscarmos uma imagem viva de nosso amor, por meio da qual ele possa transcender a si mesmo e demandar ainda mais amor, levantaremos propositalmente uma barreira para o amadurecimento da amizade, o aumento das virtudes e o crescimento de nossa humanidade. Em suma, isso é autoparalisação, autoisolamento, autoimplosão. Tudo gira ao redor de um dos cônjuges. O pouco de atenção que sobra para o outro só serve para suprir as necessidades de uma das partes, não sobrando nada para mais ninguém [3]. Não à toa Aristóteles e Santo Tomás consideram esse tipo de relação instável e prestes a desintegrar-se.

É verdade que essa descrição só se aplicaria plenamente àqueles que estão tomados por uma mentalidade antifamília extrema, o que infelizmente parece estar se alastrando pelo Ocidente nos dias de hoje. Mas esse é o ponto mais baixo, o caso limite de uma tendência de pensamento e sentimento que não consegue enxergar (ou se recusa a fazê-lo) o quanto o amor esponsal é literalmente “corporificado na criança recém-nascida”.

A sabedoria da Igreja Católica é muito diferente da loucura do mundo. Sua doutrina inspira, desafia e consola. Na encíclica Casti Connubii, o Papa Pio XI expressa essa sabedoria: 

Acresce que Deus quis que os homens fossem gerados, não somente para que existam e encham a terra, mas, muito mais, para que sejam adoradores de Deus, o conheçam e amem e, enfim, dele fruam perenemente nos céus. Este fim, em razão da admirável elevação do homem à ordem sobrenatural por Deus, supera tudo o que o olho viu, e o ouvido ouviu e o coração do homem concebeu (cf. 1Cor 2, 9). Daí se vê facilmente o quanto a prole, nascida pela onipotente virtude de Deus, cooperando para isso os cônjuges, é dom da divina bondade e fruto egrégio do matrimônio.

Que modo privilegiado de compartilhar o maior dos bens — batizar filhos e filhas, educá-los no temor e no amor a Deus e pô-los no caminho da vida eterna com Ele e todos os santos —, e fazê-lo como casal, como família!

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